25/01/2018

As cartas de amor de Ofélia: capítulo 1


Os dias nasciam já mortos pelo pudor que se vivia naquela aldeia, as pessoas andavam de um lado para o outro atarefadas com as suas rotinas que lhes obrigavam a correr atrás dela. O tempo não chegava, já não era suficiente e o quotidiano antes calmo comparava-se com o atletismo que passava na televisão – estavam a passar os jogos olímpicos; e por vezes, apesar da multidão de meia dúzia de pessoas, parecia erguer-se uma cidade afogada na industrialização. Cada vez mais as pessoas tornam-se máquinas automáticas nas suas tarefas, cada vez mais a possibilidade de encarar atitudes, outras perspetivas, caras e olhares diferentes, tornou-se uma raridade.
Ninguém parava junto a ninguém para se cumprimentarem, já não se faziam conversas de café, as raparigas novas já não apreciavam rapazes à janela, escondidas aos olhos viçosos das beatas. Agora, os “bons dias” fazem-se entre passos apressados que tornam a voz retorcida que mal se faz ouvir no perplexo do outro. Mas entre estas almas perdidas, ainda existe Ofélia, uma alma ingénua, que se perdeu do mundo que tinha acabado de nascer. Para ela ainda se vivia a preto e branco, ainda se passeava calmamente na rua, o tempo era longo e nem sempre havia o que fazer. O paralelismo que existia entre estas duas vidas tornou-se o encanto da sua essência, as pessoas passavam e sorriam, mas contrariamente, Ofélia sentia-se só em tudo o que a rodeava, apesar de retribuir sorrisos, palpavelmente encontrava-se distante, tão distante que era suficiente para não se ver no enquadramento que parecia ver. 
Nunca estivera tão confusa e perdida no mundo. 
Escrevia cartas a tudo que considerava amor como modo de consolação e agradecimento à sua existência desde que se lembra de saber escrever, mesmo enquanto a sociedade a tornara banal diante de seus próprios olhos. Escrevia-as e guardava-as de seguida na caixa que escondia debaixo do armário secretamente. Era uma moça bem parecida, de cabelo grisalho num combinação de castanhos que ninguém entendia se fugia para o moreno ou para o loiro, mas sempre fora de poucas palavras, de poucas emoções, odiava pessoas mas não perdia uma oportunidade de decifrar o que as fazia distinguir-se uma das outras. E as suas cartas eram tudo aquilo que ela não era em pessoa e por isso mantinha-as onde ninguém as pudesse ver, para que ninguém imaginasse que existissem, para que não tivesse que dar justificações de si a quem quer que fosse. Temia o porquê, porque sempre o temeu.
Chovia a potes e eram cerca de 7h da manhã de domingo. O vento soprava forte contra tudo o que lhe cruzava caminho, as árvores já não tinham folhas e estava prestes a levantar-se um dia de tempestade. Não se via ninguém na rua, haviam aberto duas mercearias fazia uns minutos e o café principal ainda estava por abrir. Quase toda a aldeia levantara-se por volta das 8h para ir à missa e outras, que era o caso de Ofélia levantaram-se ainda nem o sol tinha nascido. 
Todos os dias, ia até ao picadeiro ver o dia nascer, achava que se o dia não começar como gosta, mais valia nem começar. Eram essa a razão que a levara até lá todos os dias, a crença naquilo que vê ser o ponto definitivo do seu dia. O dia já tinha nascido, fazia tempo, apesar de chuvoso, mas havia algo que Ofélia nunca dispensara comprar, independentemente do tempo que se punha, o seu café e meia dúzia de maças vermelhas na mercearia do sr. Alberto. Enquanto escolhia as maças que queria levar para casa, perguntou:

Pode-me ir buscar o café do costume sr. Alberto?

Já aqui está menina, empacotado em saco de papel como gosta! – diz dirigindo-se até ela para lhe entregar em mãos com todo o cuidado e com um sorriso no rosto.

Pagou e voltou para casa deslumbrada nos seus pensamentos. Sem acreditar no que lhe tivera acontecido no caminho para casa. Ao chegar poisou os sacos em cima da mesa da cozinha e dirigiu-se para a cadeira baloiço que tem no alpendre a sorrir sem motivo, repetidamente vezes sem conta. 
Sentou-se e ali ficou toda a manhã.
Encontrava-se tão perturbada num sentido que nem ela percebera, que quando os seus pais chegaram da missa acompanhados pela sua irmã, percebera que não tinha preparado o café da manhã como de costume. Como não ia à missa os pais deram-lhe a obrigação de preparar o pequeno almoço todos os domingos, para quando chegassem poderem comer sem pressas e para lhe ocupar o tempo para que não tivesse oportunidade de ir para a rua. Era uma forma de controlarem a sua vida, visto que de outro modo já não o conseguiam fazer e talvez um modo de castigo por não ser como a sua irmã.
Irene, a sua irmã mais nova e única irmã, de 13 anos era de estatura baixa, nada se compasse consigo, tinha gostos contrários aos seus e crenças que se enquadravam no ambiente familiar. Era o orgulho da família por frequentar a missa, enquanto Ofélia não acreditava em milagres; estudava num convento de freiras e Ofélia não tinha pachorra sequer para estudar. Tinha conseguido terminar o nono ano com bastante custo e desistiu de estudar, ainda faltara 2 anos para terminar a escola.
Ao se aperceber que já tinham subido para os quartos, foi a correr para a cozinha preparar o café, para quando chegassem à mesa não percebessem que se tinha esquecido do que tinha por fazer. O tempo de mudarem a roupa da missa para a roupa de se estar em casa era tempo suficiente para preparar o café e por a mesa. Enquanto colocava a chávenas e os pratos cantarolava entre os dentes uma melodia qualquer que inventara à força e o café terminou no exato momento em que a família Magalhães se juntou para tomar o pequeno a almoço. Enquanto isso, discutiam as leituras da bíblia, a economia do país e o acidente entre dois carros que ocorreu no dia anterior no fim da rua onde moravam.
Por norma, as leituras de domingo passavam despercebidas a Ofélia, mas não era o caso, de qualquer outro tema que se seguisse. Apesar de não gostar de estudar, era uma rapariga culta e bem sucedida, sabia falar um pouco de tudo, tinhas as suas perspetivas e opiniões bem definidas, nunca se deixou levar por especulações alheias. Tinha uma personalidade forte, talvez até fosse a única naquela família. Mas a sua cabeça naquele dia estava demasiado ocupada para opinar no que fosse.

O que achas que aconteceu para ter ocorrido o acidente de ontem? - Questiona-lhe a mãe, sabendo de principio que, de certeza, já tinha criado especulações do acontecimento na sua cabeça – Achas que alguém teve culpa? – acentua a sua preocupação ao ver que não recebe nenhuma resposta da filha.

Não sei mãe, ainda não pensei sobre o assunto… - afirma completamente a leste e de olhar vidrado no nada.

A mãe ao perceber que algo se passara com a filha ficou a mica-la durante uns minutos a tentar perceber o que se passava, o que a tinha deixado naquele estado apático. Nunca a vira daquele modo, mas ao fim de olhá-la, achou que talvez fosse apenas cansaço ou do tempo e deixou-a ficar.
Em modo de afastar as pessoas mais curiosas tentou abstrair-se das ideias que lhe congelavam as ações e as reações. Concentrou-se na comida e limitou-se a comer e a acenar com a cabeça às perguntas que lhe iam fazendo no decorrer da conversa. E mesmo sem ouvir o que lhe perguntavam tentava ainda acenar assertivamente e aleatoriamente da forma mais eficaz. Na maioria das vezes a sua resposta nem fazia sentido, mas para Ofélia tudo estava certo.


* * *
Enquanto Ofélia regressava a casa, deparou-se com um rapaz, na sua opinião, bonitinho, de aspeto engraçado e com um jeito que lhe caia extremamente bem. Era engraçado, dizia para si mesma. 

Desculpe, menina… Que horas são sabe-me dizer? – Perguntou-lhe. 

8h10 - responde sorridente após ter olhado para o relógio para verificar que horas seriam realmente. 

Muito obrigada. A menina é muito bonita o que faz a estas horas aqui na rua e sozinha? - pragueja intimidado pela sua beleza. 

Vivo no final da rua, vim comprar café. - não foi capaz de apenas dar um risinho e ir embora. Apesar de apresentar um tom tímido cochichou qualquer coisa por boa educação e seguiu caminho. 

Até um dia destes! - Gritou para que ouvisse mesmo de longe ao pegar na bicicleta que tinha estendida no chão. 

Seguiram ambos o seu caminho, em sentidos opostos.
Nenhum sabia o que fazer depois daquele encontro tão inesperado e casual. Ofélia denotava-se no dilema se deveria olhar para trás para ver se Mauro estaria a olhá-la a ir embora. E Mauro estupefacto ponderava se devia ir embora ou corria em direção à mulher mais bonita que vira em tempos. 
Sem serem capaz de escolher, foram andando para os seus destinos e permaneceram-se em pensamento um no outro. E ficaram por horas assim, sem saber o que o outro estaria a fazer, sem saber se estariam a pensar um no outro. 
Mas estavam e parecia surreal tal e qual como Ofélia mais gosta e acredita que deva ser.

* * *


Tornava-se cada minuto mais impossível evitar os pensamentos que tinha, e o episódio repetia-se constantemente na sua mente num loop interminável. Descontrolou-se e gargalhou com toda a voz que tinha. Olharam-na com espanto e riram também sem fazer qualquer tipo de pergunta. 
Ninguém percebera o que tinha acontecido, achavam que se estava a rir por ironia. Falava-se de momento do facto de o sr. José ter que fechar a loja de meias por não ter dinheiro para pagar a renda devido ao aumento que tinha sofrido no mês passado. Para além dos poucos cliente que tinha, que mal lhe pagavam as contas de casa, o aumento da renda da loja não veio nada a calhar, mas o estado assim o exigiu por uma lei qualquer de espaço que nem fazia ideia que existia, se é que existe. Agora para além de não conseguir pagar as contas de casa, a renda também fica por pagar, os clientes passaram a ser menos porque ter aumentado os preços das meias e há dias que acaba por ter que passar fome.

08/01/2018

A carta a um estranho


Segunda, 8 de janeiro 2018

Vi-te passar na rua no outro dia. Não sei se reparaste em mim a olhar-te, e eu também não sei qual o teu nome mas deste-me a sensação de te conhecer a vida inteira. O estranho. É assim que me lembro de ti sempre que vejo passar quem não conheço, sempre que passo aleatoriamente pelos meus pensamentos perdidos no silêncio da noite.

Quando me perguntam se alguma vez sorri a um estranho, respondo que te conheci a ti. Estavas à distância de um passeio ao outro da estrada, mas foi como se estivéssemos do mesmo lado em direções opostas que nos obrigavam a cruzar olhares intimidantes e tão naturais quanto o inevitável comportamento do homem. 

Mas eu estava só, nos dois sentidos mais latos, sentada num banco de autocarro à espera que se fizesse tempo até casa. Enquanto o tempo passava, os vidros ofuscavam-me o olhar entre flashes de supostos edifícios, cores neutras e ruínas de uma cidade pouco nova. O tempo até se passava - o costume; e o rock dos anos 80, que me zumbia nos ouvidos, chegava a animar a um nível satisfatório toda a monotonia da viagem. E de repente apareces-te por breves miragens nos meus olhos a quebrar-me o ritmo habitual e vi-te em plena lucidez por meros segundos. Na rapidez de um olhar certo e instantâneo soube quem eras, davas-me boas energias e não era o barulho da música, eras tu. Perguntei-me o quão cansativo é ser-se genuíno, e perguntei-te a ti: "de que planeta és?". A minha cabeça não soube imaginar o equivalente ao que seria a tua resposta, então fiquei-me por ali. Estava de mãos geladas e com um vidro desembaciado marcado pelas mãos que não sentia. Já não te conseguia ver. Não te vi tanto quanto desejei, mas vi-te e bastou. Só te soube sorrir, mas hoje sei que soube tudo o que bastava. Conhecer-te fez-me acreditar que as coincidências existem e tu foste a coincidência mais bonita que tive.
Incontro.Verso © . Design by FCD.