22/07/2017

De(lírios) a florescer nas artérias


Por vezes o norte aproxima-se, quando a escuridão da noite acaba por cair sob os ombros, em peso bruto. Pesado e estonteante. A esmagadora solidão faz acreditar que o céu, no seu infinito, desliza por debaixo dos pés, como se andar, de cabeça na terra e pés no céu, acomodasse-se banal. E é aterrorizador como o universo conspira em todos os sentidos que inspiramos: solenes (amar)guras. Nestas alturas a agonia faz-nos desaparecer entre os desejos inacabados e as memórias que jamais farão vida presente. O passado encaminha o futuro e molda o presente sempre na esperança de se continuar a edificar verdades que não se baseiem apenas em falsos princípios. Acredita-se que não servem somente para preencher as desgraças, mas também para se fazerem vingar na história. Envolvem-se dentro do corpo, com tudo o que são, com o que as podemos fazer ser, metaforicamente, com o tempo as memórias oferecem-nos as origens que esquecemos. Talvez não será o certo o correto, talvez haja uma similaridade entre o errado e a existência.

A vida é um contraste. Um contraste visível a preto e branco, como sim e não, amor e ódio, paz e guerra. Só se aplaude a democracia que votamos. Mas o medo consterna-se quando menos se espera e os aplausos abafam a liberdade. Não se tem medo de ter medo, tem-se medo de olhares, de bocas que não falam e gritam para dentro das suas entranhas venosas; Não se tem medo de pessoas, tem-se medo da finitude a que as pessoas chegam pelos seus delírios caprichosos, pelas suas rubricas maliciosas e pelos seus medonhos bens sem fins. É correto. A vida é imprecisa. Mal se sabe de que cor são feitos os bancos em que esperamos o tempo. Mas a incerteza não tem de ser a partida do ódio comum. O tempo que vai passando e se carrega dentro da algibeira, à mercê dos nossos dilúvios, é a sombra que não olhamos, mas que nos guia o caminho do silêncio sem que se saiba. A vida é imprecisa por corrermos montanhas e vales, enquanto a loucura que nos cura, deste tempo cheio de pressa, está num olhar cerimonial com o que nos mantém na terra, o universo. Por vezes a espera torna a eloquência um desespero, mas preferimos continuar a caminhar ao encontro das estrelas, como se algum dia as pudéssemos desejar ser nossa casa o que é do mundo.

Frustrações diárias, constantes e brutais fazem os dias comuns.
Mas em caso, não se levem tanto à morte, nem se tragam tanto à vida.

Pois há uma linha muito ténua entre o que achamos sanidade e o que achamos loucura. E o esforço que fazemos para permanecer no lado são só é feito para que não sejamos punidos. Senão, frequentemente iríamos cruzá-la e tudo seria mais interessante. É na fronteira destes extremos contraditórios que as lágrimas consomem os olhos, quando veem os pés fugirem do chão gélido sob texturas amargas, a cada passo mais precoce, atrevendo-se há longevidade casual. É nesta tristeza vaga que se sublimam lagoas, quando as manhãs são noites e as noites se igualam a dias, quando o olhar tropeça na dormência da expectativa. Despejamos o tempo como se não passasse entre linhas cegas. Com o decair da vida deixamos de olhar por completo, aprendemos a olhar de olhos fechados. E acaba por ser neste semiconstrangimento que a vida respira e o corpo congela a cada catástrofe estridente da guerra entre o existir e o não saber ser.

Somos. Fragmentos "vazios", pontos que tanto fomos como seremos e não somos em noites de vácuo intenso que violentam os pensamentos em troca da nudez de sentimentos sensíveis. Lamentamos ao perceber, ontem, que o caminho que nos leva até casa nunca engana.

4 comentários so far

  1. As tuas palavras provam sempre que mesmo na dor se encontram centelhas de beleza. Mas o que me extasiou neste texto foi mesmo o seu imaculável título.

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  2. Texto encantador e inspirador. A vida é um constante improviso, sem regras nem linhas de seguida. Teremos sempre de viver dores, momentos em que simplesmente lutaremos pela sobrevivência porque nos esquecemos o que é viver e que no final deste filme a gente morre, sem opção de replay.
    O importante é atravessar todas as linhas, todos os limites, fazer o que mais ninguém faz, viver da maneira mais estupida e feliz sem nunca prejudicar ninguém e sempre inspirando alguém.

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  3. ''Pois há uma linha muito ténua entre o que achamos sanidade e o que achamos loucura. E o esforço que fazemos para permanecer no lado são só é feito para que não sejamos punidos. Senão, frequentemente iríamos cruzá-la e tudo seria mais interessante.'' Adorei esta frase. Revi-me muito nela, especialmente se juntar o que falas sobre o medo, mais acima. Eu sou muito medrosa e isso tem muita influência na minha maneira de tomar decisões.

    Miúda este texto tá do caraças, fez-me parar várias vezes e pensar no que escrevias, muito bem :)

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  4. Posso levar um bocadinho do teu jeitinho para escrever?

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